Na década de 1980, havia três crianças pequenas na minha família, uma experiência tão difícil que decidi que nunca, jamais teria filhos – minha paralisia cerebral era um reforço a tal decisão, não o motivo principal. Na época, parecia que o mais provável era não ter qualquer relacionamento com mulheres e demorou muitos anos para a questão deixar de ser abstrata.

O melhor exemplo daquele horror à paternidade ocorreu em 2004, ao me encontrar com uma namorada loira e linda, bem o biotipo mais valorizado no Ocidente. Ao saber que eu não transava sem preservativo, ela quis que fizéssemos isso. Em vez de cair num oba-oba fiquei alarmado com a possibilidade de engravidá-la, em todos os dias que passamos juntos ela se esqueceu de tomar o anticoncepcional e todos os dias o lembrei, peguei no seu pé. Depois, a repreendi por esse esquecimento sistemático e ela respondeu que não podia engravidar por ter endometriose, argumento que não me convenceu – de fato, após seis anos ela teve uma filha sem fazer tratamento algum (pensei que havia escapado...). E o motivo mais imediato que ela deu para acabar o namoro comigo foi minha recusa a ter filhos.

Outro exemplo é que, quando Silvia e eu começamos a namorar, confiamos que os problemas do seu útero – entre outros, também endometriose – impediriam uma gravidez, após nosso segundo encontro pensou que poderia estar grávida, tirou onda – talvez já após o teste dá negativo –, mas não achei a menor graça, dei uma bronca nela e decidimos que Silvia passaria a usar anticoncepcional – evidentemente nada disso certo.

No dia em que soubemos que tínhamos gerado Clara, meu pânico foi total, não consegui dormir um minuto e, nas duas semanas seguintes, fiquei à beira da depressão a ponto de Silvia se preocupar em sair comigo para ver se eu reagia. Também fiquei apavorado em seu primeiro mês de vida.

Com o tempo, comecei a me derreter só por ouvir Clara me chamar de “papai”, Silvia passou a fazer afirmações como “nunca vi um pai tão apaixonado pela filha”, etc. Essa mudança não foi instantânea, automática, demorou um semestre e, no fim desse período, nosso casamento chegou a ficar estremecido. Já escrevi sobre os fatores básicos dessa mudança noutro post, mas o que foi dito ali não explica muito meu processo de transformação interna, que não consigo detalhar – e, se conseguisse, talvez não quisesse expô-lo a público. O certo é que considero Clara a melhor coisa que me aconteceu.

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